Entrevista: Gilliard Lopes, produtor do FIFA na Electronic Arts Canada - Parte 1
Esta é a primeira parte de uma conversa que tive com o Gilliard Lopes, que hoje é produtor da série FIFA na Electronic Arts Canada. Conheça como ele iniciou sua carreira no Brasil, sua passagem pela Hoplon, e sua saída do país para trabalhar em uma das séries de jogos mais famosas do mundo.
A entrevista será publicada em duas partes, sendo que esta primeira tem o foco no início da carreira do Gilliard na sua empresa Paralelo Computação e posteriormente na Hoplon, e como ele conseguiu entrar como programador na EA e depois se tornar produtor do FIFA, além de falar quais são as diferenças em se produzir jogos AAA.
Bruno Cicanci: Quando você decidiu que queria trabalhar com games e por que?
Gilliard Lopes: Fiz meu bacharelado em Ciência da Computação na Universidade Federal Fluminense em Niterói/RJ, e lá conheci outros dois engenheiros de software que tinham uma pequena empresa que estavam começando a mexer com 3D e renderização em tempo real, e eu me interessei muito sobre esse assunto. Nos juntamos e abrimos um estúdio chamado Paralelo Computação, no Rio de Janeiro, em Niterói. Durante vários anos, 1998 a 2006, vivemos de desenvolver e licenciar engines para computação gráfica em tempo real, e nosso produto mais famoso era o Fly 3D. Sempre fomos muito autodidata em games, lendo muito material de fora, pois no Brasil não havia quase nada sobre o assunto. Nesta época também fiz meu mestrado e doutorado na PUC RJ em Inteligência Artificial para Games. Participamos de todos eventos que haviam na época relacionados a games, como o WGames, que hoje se tornou a SBGames. Sempre fui gamer, mas não tinha uma ideia de que poderia me tornar desenvolver até eu e meus sócios começamos a tentar quebrar alguns mitos, estudamos muito e final a parte mais difícil foi a viabilização do negócio e fazer dinheiro com isso. Começamos a descobrir que era difícil, mas não impossível, era realmente uma questão de falta de oportunidade, pois ninguém no Brasil teve a oportunidade de estar nesse meio. Isso abriu minha cabeça, e depois da Paralelo foi trabalhar na Hoplon, por 2 anos e meio. Na Paralelo tentamos criar um estúdio de jogos para criar produções de maior porte, mas pela dificuldade de encontrar investimento acabamos indo cada um para um lado, mas sempre continuando na área de desenvolvimento de jogos.
BC: Como foi sua experiência na Hoplon com o Taikodon?
GL: Apesar de eu ter uma formação muito forte em programação, sempre tive interesse pela área de design de games. Na Paralelo eu já fazia este trabalho, e quando entrei na Hoplon comecei como programar e em apenas duas semanas me tornei game designer devido a uma necessidade de alguém para liderar o time de game designers. Lá foi minha primeira experiência profissional exclusivamente como game designer, e depois como produtor. Lá tive a oportunidade de trabalhar com um profissional que foi uma grande inspiração pra mim, o Marcelo Carvalho da Devworks, e aprendi muita coisa com ele. Foi uma época muito interessante, pois participei da primeira versão do jogo que foi lançada em 2008 no Brasil. Como o jogo teve seu design reinventado 3 vezes, eu tive a oportunidade de trabalhar na produção da segunda versão do jogo, que foi a primeira lançada oficialmente. Depois de ter trabalhado na maior empresa do Brasil, a Hoplon, e ter tentado meu próprio negócio, eu vi que tinha que tentar outras coisas por que aqui estavam acabando as opções, e o próximo passo foi tentar ir pra fora.
BC: Você tinha planejado seu próximo passo fora do país?
GL: Na verdade não. Eu não saí do Brasil por que queria, e isso é algo que me faz falta, pois estava sempre participando da indústria nacional. Eu pensei que ficaria mais tempo na Hoplon e desenvolver outros jogos, mas eu senti que já tinha esgotado o que eu podia aprender e me desenvolver, não só na empresa mas na indústria nacional. Minhas opções eram sair do Brasil e continuar trabalhando com games ou talvez usar meu conhecimento de programação em outro tipo de emprego, mas eu não estava pronto para tomar essa decisão e deixar a carreira que eu amo pra fazer outra coisa. Foi quando comecei a mandar meu currículo pra fora, fiz um lista de 108 empresas e pouco mais de 10% respondeu. Dessas, fiz entrevistas com 3 e recebi duas propostas, pra trabalhar na Ubisoft de Montreal e na Electronic Arts em Vancouver. Quando soube que a vaga na EA era pra trabalhar na franquia do FIFA, e a proposta deles era um pouco melhor, não tive dúvidas e fui pra lá, pois sempre fui muito fã de futebol. Nunca imaginei que isso poderia acontecer, mas consegui unir minhas duas paixões: fazer jogos e futebol.
BC: Como foi deixar o país e continuar a carreira na EA?
GL: Minha experiência na Hoplon me possibilitou sair do país e ir para a EA, desde 2008. Fiquei um tempo trabalhando como programador e depois de dois anos me tornei produtor. Minha porta de entrada na EA foi ser um programador de games, pois é muito difícil uma empresa como a EA trazer alguém de outro país para trabalhar com produção e verificar se a pessoa é certa para este trabalho apenas através de entrevistas, foi necessário um convívio e a demonstração de interesse sempre ajudando e participando do game design para mostrar que eu tinha condições de trabalhar com produção também, que foi sempre meu objetivo maior. E desde 2011 tive a oportunidade de ser produtor do FIFA na parte que eu entendo mais que é Presentation, como é chamado aqui, que envolve a computação gráfica do jogo e outros detalhes como câmera e interface com o jogador, e aos poucos cada ano eu venho ganhando um pouco mais de responsabilidade. Já no FIFA 14 fui produtor de Presentation, Rendering e Audio. Uma coisa que sempre conto é como foi minha entrevista aqui na EA. Na época estava em Florianópolis, e todas entrevistas foram por telefone. Como estava concorrendo a uma vaga de programador, eu conversei com pessoas técnicas. No dia quinta entrevista eu estava tranquilo por que já conhecia o pessoal, mas eu tive uma surpresa pois a última entrevista foi com o produtor do FIFA. Na hora eu gelei, e não imaginava que tipo de pergunta ele faria, e sua primeira pergunta foi sobre o que eu estava achando da seleção brasileira com o Dunga! Ficamos 40 minutos só conversando sobre futebol, e nada sobre desenvolvimento de games, ele só queria conversar sobre isso. Foi um momento engraçado e inesperado, e no dia seguinte recebi o contrato para trabalhar na EA. Este produtor, o Simon, foi meu mentor aqui e me apoiou nessa mudança de carreira que consegui fazer aqui dentro.
BC: O que, na sua formação, te ajudou a trabalhar em jogos AAA?
GL: Muito do que me ajudou foi saber que algo era possível e fazer. Desde a Paralelo eu meu sócio não buscávamos implementar o que era mais fácil, mas sim o que era mais difícil para aprender coisas mais avançadas. Muitas vezes não conseguíamos, mas a gente tentava. Na época que estava no Brasil fiz sempre projetos pessoais e estava sempre estudando coisas que fossem mais avançadas e para o lado de jogos AAA. Por exemplo, assim que saiu o UDK eu comecei a aprender tudo para ver como muitas coisas eram feitas. Muito antes disso até já conseguíamos carregar os níveis do Quake III Arena na nossa engine gráfica da Paralelo, e mesmo sendo uns dois anos depois que o jogo saiu, isso não era algo que existia no Brasil. Sempre fui muito estudioso nas áreas de computação gráfica e inteligência artificial, e isso contou muito por que na hora das entrevistas eu conseguia responder as perguntas e também tinha exemplos de código para enviar, e muitas dessas perguntas eram problemas de jogos AAA, como, por exemplo, perguntas sobre técnicas de multi-threading, que eu sabia não por ter experiência, mas por ter estudado isso. Todo esse esforço que fiz por fora de aprender valeu muito a pena para conseguir ir bem nas entrevistas, pois mesmo sem um portfolio de jogos AAA, ainda assim eu tinha muita coisa que fiz por conta própria que eram avançadas e no nível de jogos AAA. Minha experiência no Brasil foi muito boa, e me possibilitou contribuir desde o primeiro dia na EA, mesmo tendo uma experiência limitada pelas oportunidades daqui. Isso foi crucial para eu estar na EA hoje e ter subido de maneira bem rápida de programador para produtor do FIFA, comparado com outras pessoas da mesma época que eu.
BC: Tecnicamente falando, quais são as diferenças entre um jogo AAA e um jogo indie?
GL: Acho que independente de ser indie ou não, em projetos mais curtos e de menor investimento você geralmente não faz soluções para todo tipo de problemas. Por exemplo, vale a pena fazer um editor de níveis para um jogo que vai ter apenas 5 níveis? Acho que esta é a principal diferença, pois aqui tudo que a gente faz para o FIFA, não é para o FIFA 14, por exemplo, e sim para todos jogos da franquia que ainda virão nos próximos anos. Se você considerar que temos que lançar um novo FIFA a cada ano, temos sempre que pensar em soluções que sejam escaláveis para os próximos projetos e que não vão criar dor de cabeça depois e deixar a ferramenta inútil para outros jogos. Em jogos AAA temos uma visão de longo prazo muito maior, e também temos que ter muito cuidai com tudo. Uma linha de código que parece inofensiva pode quebrar o jogo para toda equipe, pois o jogo é muito grande, e só aqui no Canada temos 150 pessoas trabalhando exclusivamente no FIFA o ano inteiro. Hoje temos muitas ferramentas desenvolvidas durante anos para impedir que este tipo de coisa aconteça, e isso é o tipo de coisa que não se desenvolve para jogos curtos e com pouco investimento. Aqui as soluções precisam ser robustas, e funcionar bem em tudo, sempre com a visão de longo prazo. Um exemplo disso é um sistema no FIFA chamado Skill Games, que foi criado pensando em ser usado no futuro e hoje podemos reconstruir lances de jogos reais utilizando este sistema, que inicialmente foi projetado para ser apenas mini-games e testar as habilidades do jogador.
A segunda parte trará mais detalhes sobre como é trabalhar na EA, o que estudar para trabalhar em jogos AAA, dicas para que está começando, e muito mais! Confira também o PodQuest, o podcast criado pelo Gilliard e outros dois amigos que também são brasileiros e trabalham fora do país desenvolvendo jogos.